Raphael Montechiari
- Eu fico sempre te ouvindo o dia inteiro e você nem liga pra mim. Já cansei de ficar escutando essas baboseiras que você fala o dia inteiro. É só eu te ligar e você começa a falar.
- ...
- Ahh...então quer dizer que vai ficar desconversando? Falando baboseiras. Olha só. Uma coisa eu te digo. Não vou te ligar mais. Só assim vou ter paz. Fica você inventando mil desculpas pra tentar explicar os problemas de sua vidinha medíocre e sou eu sempre que fico ouvindo. Você nunca pára pra escutar. Quero ver o dia que você ficar sozinha. Ah! Aí eu quero ver. Ninguém pra te ouvir. Aí vai dar valor ao bobo aqui. E tem mais. Já está ficando velha e ninguém mais dá valor a quem está velha não. Daqui a pouco sou eu quem vai te largar. E pegar uma novinha pra ficar fazendo todas as minhas vontades. Não toma jeito não pra você ver!E vou desligar agora porque vou para o quarto dormir. Não quero mais nada com você.
(Bate a porta do quarto)
No dia seguinte:
- Oi amor. Estou te ligando pra pedir desculpas por ontem. Eu estava muito aborrecido com as coisas que você foi me contando e no final botei a culpa toda em você. Achei que estava inventando tudo só pra me deixar triste. Mas a culpa não é sua. A culpa é daquele homem que sempre passa aqui embaixo gritando pra vender aquelas caixas de mamão. Ele me deixa nervoso e desconto em você. Mil desculpas. Nunca achei que eu fosse ficar tão transtornado. Depois vem você me contar esse monte de tragédias que vêm acontecendo. E o grito do cara vendendo mamão papaia ao mesmo tempo. Isso vai me deixando nervoso! A campainha do andar de baixo tocou ontem umas oito vezes. Soube que tem um cobrador que vem atrás do vizinho aqui de baixo. E ele finge que não está em casa pra não pagar. Mas sei que ele está. Porque eu ouço a descarga do banheiro dele e quando liga o chuveiro. E ontem, um pouco antes do cobrador chegar, ele deu uma descarga e tomou banho em seguida. Depois foi uma série de dedadas na campainha e nada. Isso tudo vai me deixando nervoso.
A vizinha da frente está com algum problema também. Ela coloca sempre papéis no vidro da janela, como se estivesse querendo esconder alguma coisa. Depois rasga tudo e troca. Põe papéis mais escuros e de novo rasga tudo e troca. Põe papéis ainda mais escuros. E fica trocando até escurecer. Depois acende as luzes. E já está sem nenhum papel. Isso me deixa preocupado. Com todas essas coisas que você tem me contado que tem acontecido no mundo, fico preocupado mesmo. Quem sabe ela não mata pessoas e esconde os corpos? Durante o dia ela vai destrinchando os corpos e guardando na geladeira. À tardinha ela manda tudo pro lixo e depois, quando escurece, já está tudo escondido. Ela tem mesmo cara de assassina. Preciso desligar. Ela está olhando pra cá agora e pode estar querendo alguma coisa comigo.
(Bate a porta do quarto)
Vinte e sete minutos depois.
- Oi. Acho que já podemos ficar de bem. Estava no quarto relembrando os bons momentos que vivemos. E o quanto eu aprendi com você. Além do que você é muito divertida e quando te ligo é minha única companhia. O que? Nós não podemos continuar juntos? Novelas! Sempre o mesmo assunto! Não fale mais isso comigo. Sabe que fico magoado. Olhe dentro dos meus olhos. Só vai ver lágrimas. Eu sei que às vezes sou rude. Mas já te contei sobre o cara que vende mamão papaia, né? Ele me deixa tenso. E a pia que não para de escorrer água. Amarrei ontem mesmo um trapo nela pra segurar. Mas quando abri hoje, para lavar minhas mãos, não consegui recolocar e tenho certeza que nunca mais conseguirei. Vou ter que viver com essa água escorrendo noite e dia, dia e noite, noite e dia. Você tem alguma idéia do que eu posso fazer? O que? Você parece que nem está me ouvindo. O que tem a ver o novo filme que vai passar hoje com isso? Tem alguma torneira vazando no filme e irão me ensinar a consertá-la? Aposto que não. Então não fale bobeiras. Já está tocando a campainha do vizinho de baixo. Vou desligar pra ouvir o que está acontecendo. Depois te ligo de novo e conto.
(Bate a porta do quarto)
Uma hora e meia depois.
- Fale baixinho que o cobrador ainda está lá embaixo. Vou abaixar o volume. Deu uma merda do cacete. Acho que ele foi com polícia e tudo. Arrombaram a porta e pegaram o vizinho. Parece que deram uma surra nele e quebraram muita coisa por lá. Esses cobradores são muito violentos! Eles chamam a polícia e pagam a eles pra cobrar os maus pagadores. Estou até preocupado com a conta, de tanto que eu te ligo. O dia inteiro. Todo dia. Acho que vou até ficar devendo e os cobradores trarão a polícia e quebrarão minhas pernas. Acho melhor até parar de te ligar. Daqui a pouco começarão a tocar a campainha aqui e eu não vou atender. Porque eles são muito violentos. Acho até que irão arrombar depois e me bater. Mas o quanto eu puder fingir que não estou aqui vou fingir. A conta virá tão alta que não poderei pagar. É. Preciso ficar calmo. Jamais vou parar de te ligar. Sabe que é minha única companhia, né? E de que adianta eu ter pernas sãs se é a sua companhia que me faz bem? E se você estiver me falando coisas tristes é só eu mudar de canal que tudo se resolve. Boto num filme de amor e só vou ouvir coisas belas. Mas hoje vou ficar aqui, só te ouvindo, o dia inteiro. Tenho falado demais...
quinta-feira, 19 de março de 2009
segunda-feira, 9 de março de 2009
A Senhora de Cabelo Laranja
Raphael Montechiari
-Olá Catarina. É você a Catarina, certo?
- Sim. Sou eu. E você?
- Vim recomendada por uma conhecida sua.
- Conhecida?
- É. Ela esteve junto de você durante os últimos anos.
- Ah. Aquela senhora de cabelo laranja?
- Isso.
- Sim. Ela está sumida mesmo. Passava a maior parte do tempo comigo. Quando eu ia lavar roupa no rio ela ficava me olhando. Não me ajudava. Só ficava ali me olhando. Às vezes chegava perto e apertava o meu coração. E depois soprava minha barriga. Era um dor muito forte que eu sentia no coração. O frio na barriga, com seu sopro, também me incomodava bastante. Mas o aperto no coração era o pior. Eu olhava para o céu, pedindo a Deus que me desse força. Ficava assim olhando para o céu até ela parar. Depois ela ficava por ali. Me olhando.
- E mais o que?
- Mais um monte de coisas.
- Como?
- Mais um monte de coisas. Ela me mostrava umas imagens. Meu namorado e eu, na porta da capela, abraçados. Isso foi no primeiro dia que ficamos juntos. E mais outras imagens de momentos bons. Só de momentos bons. No início ela vinha duas, três vezes por semana. Depois passou a morar lá em casa. Ela fazia a cama ao lado da minha. Um colchão velho mas com lençóis bem branquinhos. Travesseiro alto. E ficava ali me mostrando imagens e lembrando histórias. E vinha apertar meu coração. Mas quando eu ia encontrar o meu namorado, ela sumia. Ela nunca se encontrou com ele. Nem sei como conseguiu tantas imagens nossas assim. Logo que eu tomava o trem para voltar já notava sua presença ao meu lado. Apertava tanto o meu coração que eu até chorava, enquanto via meu namorado acenando.
- Então! Eu vim a pedido dela.
- Eu não gostava muito dela. Você a conhece bem?
- Sim. Fazemos vários trabalhos juntas.
- Ela sempre foi muito discreta e sempre presente ali ao meu lado. Às vezes eu até a esquecia. Mas quando desocupava a mente eu percebia que ela estava ali e, ao me virar para trás, lá estava ela me olhando. Era só eu a descobrir que ela vinha com aquela mão ossuda e enrugada para apertar meu coração. E soprava frio na minha barriga. Várias e várias vezes eu chorei. Eu já contava os dias para ver o meu namorado e me livrar, nem que fosse por algumas horas, de sua tortura. Ela desaparecia. Quando estava com ele eram os melhores momentos de minha vida. Mas passavam rápidos demais. Quando eu dava por mim, lá estava eu, indo embora, com a senhora de mão ossudas e enrugadas, cabelo laranja, apertando meu coração e soprando minha barriga.
- E por quê ela se foi?
- Você não soube?
- De que?
- Da guerra?
- Soube. Ele foi pra lá?
- Foi. Fiquei muito triste no dia em que ele me enviou uma carta dizendo que iria. Imediatamente peguei o trem e fui vê-lo. Viajei as doze horas até sua cidade. A tal senhora estava lá, do meu lado o tempo todo, com as imagens do último encontro. Todas novíssimas. E aos poucos foi me mostrando as imagens mais antigas, já desbotadas pelo tempo. E ela lá. Apertando meu coração. Ao chegar na estação, no meio da confusão e do empurra-empurra no desembarque, ela sumiu de novo. Procurei o meu namorado e encontrei-o muito triste. Ele confirmou que iria para a guerra e não tinha outra escolha. Aproveitamos bastante nosso fim-de-semana e ele, em nenhum momento, me disse quando voltaria. Eu também não perguntei. Mas ele me prometeu mandar cartas diariamente. Eu lhe disse que quando recebia suas cartas a senhora de cabelo laranja não se aproximava de mim até que terminasse de lê-las. Em seguida ela vinha com muito mais força que o normal e apertava meu coração.
- E quanto tempo ele ficou por lá?
- Recebi cartas por duas semanas. E a última que me mandou falava sobre uma mulher que havia encontrado numa cidade destruída pela guerra. Todo seu pelotão havia sido bombardeado e sobraram poucos com ele. A mulher sempre o olhava de longe. Até que um dia se aproximou e disse: “Amanhã a gente foge daqui!” Na carta ele me disse tudo isso e ainda disse o quanto me amava. Eu entendi que era o fim. Chorei por várias e várias noites, mas me senti amada. Sabia que ele havia ido com ela mas era a mim que ele amava. E fiquei por muito tempo com a senhora de cabelo laranja apertando meu coração sem parar. Já nem podia ir lavar as roupas no rio porque não tinha força pra me levantar.
- E como era essa mulher que ele encontrou?
- Disse que era alta e bem magra. Com uma palidez mórbida. Alguns amigos já tinham esbarrado nela antes dos bombardeios. Ela caminhava no meio de todas aquelas explosões e tiros, sem nenhum medo de ser atingida. Caminhava olhando fixo para frente, às vezes escondida pelas fumaças, às vezes pelos gritos. E foi isso.
- Então. Eu vim pra ficar no lugar da senhora de cabelo laranja. Agora sou eu quem vai apertar seu coração e te fazer sofrer. Às vezes ela virá. Provavelmente hoje vai dar uma passada aqui. Trará imagens do seu namorado e apertará seu coração. Mas eu ficarei a maior parte do tempo com você. Até que venha alguém para o meu lugar.
- Sabia mesmo que viria.
- Sim. Eu sei que me aguardava.
- Como é mesmo o nome dela?
- Ela se chama Saudade.
- Isso. Saudade. E você?
- Eu sou a Solidão, muito prazer.
-Olá Catarina. É você a Catarina, certo?
- Sim. Sou eu. E você?
- Vim recomendada por uma conhecida sua.
- Conhecida?
- É. Ela esteve junto de você durante os últimos anos.
- Ah. Aquela senhora de cabelo laranja?
- Isso.
- Sim. Ela está sumida mesmo. Passava a maior parte do tempo comigo. Quando eu ia lavar roupa no rio ela ficava me olhando. Não me ajudava. Só ficava ali me olhando. Às vezes chegava perto e apertava o meu coração. E depois soprava minha barriga. Era um dor muito forte que eu sentia no coração. O frio na barriga, com seu sopro, também me incomodava bastante. Mas o aperto no coração era o pior. Eu olhava para o céu, pedindo a Deus que me desse força. Ficava assim olhando para o céu até ela parar. Depois ela ficava por ali. Me olhando.
- E mais o que?
- Mais um monte de coisas.
- Como?
- Mais um monte de coisas. Ela me mostrava umas imagens. Meu namorado e eu, na porta da capela, abraçados. Isso foi no primeiro dia que ficamos juntos. E mais outras imagens de momentos bons. Só de momentos bons. No início ela vinha duas, três vezes por semana. Depois passou a morar lá em casa. Ela fazia a cama ao lado da minha. Um colchão velho mas com lençóis bem branquinhos. Travesseiro alto. E ficava ali me mostrando imagens e lembrando histórias. E vinha apertar meu coração. Mas quando eu ia encontrar o meu namorado, ela sumia. Ela nunca se encontrou com ele. Nem sei como conseguiu tantas imagens nossas assim. Logo que eu tomava o trem para voltar já notava sua presença ao meu lado. Apertava tanto o meu coração que eu até chorava, enquanto via meu namorado acenando.
- Então! Eu vim a pedido dela.
- Eu não gostava muito dela. Você a conhece bem?
- Sim. Fazemos vários trabalhos juntas.
- Ela sempre foi muito discreta e sempre presente ali ao meu lado. Às vezes eu até a esquecia. Mas quando desocupava a mente eu percebia que ela estava ali e, ao me virar para trás, lá estava ela me olhando. Era só eu a descobrir que ela vinha com aquela mão ossuda e enrugada para apertar meu coração. E soprava frio na minha barriga. Várias e várias vezes eu chorei. Eu já contava os dias para ver o meu namorado e me livrar, nem que fosse por algumas horas, de sua tortura. Ela desaparecia. Quando estava com ele eram os melhores momentos de minha vida. Mas passavam rápidos demais. Quando eu dava por mim, lá estava eu, indo embora, com a senhora de mão ossudas e enrugadas, cabelo laranja, apertando meu coração e soprando minha barriga.
- E por quê ela se foi?
- Você não soube?
- De que?
- Da guerra?
- Soube. Ele foi pra lá?
- Foi. Fiquei muito triste no dia em que ele me enviou uma carta dizendo que iria. Imediatamente peguei o trem e fui vê-lo. Viajei as doze horas até sua cidade. A tal senhora estava lá, do meu lado o tempo todo, com as imagens do último encontro. Todas novíssimas. E aos poucos foi me mostrando as imagens mais antigas, já desbotadas pelo tempo. E ela lá. Apertando meu coração. Ao chegar na estação, no meio da confusão e do empurra-empurra no desembarque, ela sumiu de novo. Procurei o meu namorado e encontrei-o muito triste. Ele confirmou que iria para a guerra e não tinha outra escolha. Aproveitamos bastante nosso fim-de-semana e ele, em nenhum momento, me disse quando voltaria. Eu também não perguntei. Mas ele me prometeu mandar cartas diariamente. Eu lhe disse que quando recebia suas cartas a senhora de cabelo laranja não se aproximava de mim até que terminasse de lê-las. Em seguida ela vinha com muito mais força que o normal e apertava meu coração.
- E quanto tempo ele ficou por lá?
- Recebi cartas por duas semanas. E a última que me mandou falava sobre uma mulher que havia encontrado numa cidade destruída pela guerra. Todo seu pelotão havia sido bombardeado e sobraram poucos com ele. A mulher sempre o olhava de longe. Até que um dia se aproximou e disse: “Amanhã a gente foge daqui!” Na carta ele me disse tudo isso e ainda disse o quanto me amava. Eu entendi que era o fim. Chorei por várias e várias noites, mas me senti amada. Sabia que ele havia ido com ela mas era a mim que ele amava. E fiquei por muito tempo com a senhora de cabelo laranja apertando meu coração sem parar. Já nem podia ir lavar as roupas no rio porque não tinha força pra me levantar.
- E como era essa mulher que ele encontrou?
- Disse que era alta e bem magra. Com uma palidez mórbida. Alguns amigos já tinham esbarrado nela antes dos bombardeios. Ela caminhava no meio de todas aquelas explosões e tiros, sem nenhum medo de ser atingida. Caminhava olhando fixo para frente, às vezes escondida pelas fumaças, às vezes pelos gritos. E foi isso.
- Então. Eu vim pra ficar no lugar da senhora de cabelo laranja. Agora sou eu quem vai apertar seu coração e te fazer sofrer. Às vezes ela virá. Provavelmente hoje vai dar uma passada aqui. Trará imagens do seu namorado e apertará seu coração. Mas eu ficarei a maior parte do tempo com você. Até que venha alguém para o meu lugar.
- Sabia mesmo que viria.
- Sim. Eu sei que me aguardava.
- Como é mesmo o nome dela?
- Ela se chama Saudade.
- Isso. Saudade. E você?
- Eu sou a Solidão, muito prazer.
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