segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Um Dia

Raphael Montechiari



Um dia eu acordei. Notei que tudo estava diferente. Borrado, como num quadro de Munch. Mas tudo real a espera do contato de minhas mãos.


Ao prestar mais atenção notei que estava sob uma árvore e via os borrões verdes das folhas ligados por traços retos, como se tivessem sido feitos com dedos molhados numa tinta marrom. Ao fundo, se descolou da árvore um azul claro sem fim com um brilho chegando pelo cantinho esquerdo. Tudo ainda borrado. Mas ao fixar o olhar eu começava a ir definindo algumas coisas.


Levantei-me e pude ver um sol sorrindo para mim, com dois olhos semi-fechados ou semi-abertos. Os raios de sol estavam espetados em toda sua cabeça redonda e pude notar uma covinha se formando nas pontas do sorriso. Meus olhos se ofuscaram como se ofuscam os olhos de quem olha para o sol. Ao mudar a direção do meu olhar vi um barquinho bem ao fundo. Ele era azul e tinha uma janelinha de vidro redonda, com uma bandeirinha vermelha logo acima do convés. Ele navegava num azul escuro, brilhoso e cheio de ondas e um peixe amarelo saltava em intervalos de tempo regulares ao seu lado. E passavam pássaros. Eles olhavam para mim sorrindo e dando adeus e então seguiam seu caminho formando vários tracinhos pretos no sol.


Agora a árvore oferecia uma maçã vermelha, meio mal pintada, entre suas folhagens. Consegui esticar minha mão para pegá-la e notei que tinha uma mão bem borrada também. Admirei a linda maçã vermelha, entre meus dedos rosados e notei que saia dela uma pequena lagartinha, que me disse: “Se for pra te ver sorrir, cedo a maçã e minha vidinha inútil.” Eu mordi a maçã - e a lagartinha - e senti um gosto maravilhoso de chocolate com mel e uma pontinha de anil. Assim que terminei de comer meu pêssego maduro e mal-pintado, olhei outra vez para o alto do morro onde estava a casinha azul, de janelinha quadrada e com a chaminé vermelha logo acima do telhado. Ela havia sido construída sobre uma relva verdinha e com pontas irregulares, como dentes afiados. E os dentes eram de serra e começaram a andar e cortar o tronco da árvore, que aos poucos gemia e pedia por ajuda. Mas os pássaros pareciam sorrir ainda e o sol sorria de volta para eles.


O vento carregava uma pipa bem amarela com uma cruz azul em seu dorso. E a rabiola vermelha acenava para mim e para a lagartinha que saía por entre meus dentes. Ela tinha um estranho sabor marrom e meus dentes davam passagem para ela. Enquanto me distraía com os pássaros sorrindo para o sorriso que criei ao tentar retirá-la com vida, o sol foi se encaminhando para o mar e chegou a chamuscar o cantinho do barco.


A lua exibia uma cara pensativa e não podia esconder algumas marcas de espinhas nas bochechas. Ela havia acabado de sair do mar e ainda escorria um pouco d’água. Algo borrou sua cor amarelo-clara. Era uma fumaça cinza, que saía da chaminé da casinha azul com janela quadrada que, logo em seguida, sumiu para dar lugar a outra e a outra e a outra, até me fazerem entender que se tratava de um trem. E seu apito zunia nos meus ouvidos que, por sorte, estavam com pequenas lagartinhas protegendo os tímpanos. Elas tinham abandonado a árvore, que ainda era borrada. Não tinha mais sua maçã e nem seu gato preso que eu havia resgatado. Também estava sem o buraco no tronco que havia sido pintado por uma menininha rosa feita de pano.


O trem, andando pelas montanhas, entrou pela boca da lua, que era como um túnel e, subitamente, furou a tela da pintura, vindo de encontro a mim. Só podia ver a luz do trem e ouvir seu assovio. Eu tentava correr, mas meus pés não me obedeciam. Quando já podia sentir o choque dele contra meus ossos senti o chão caindo e a árvore, a casa, o barquinho, a lua e o céu ficando para baixo. Notei que estava voando e a sensação era fantástica! Fazia um movimento para frente e logo estava flutuando por sobre um deserto azul, só iluminado pela luz da lua. Aproximei-me de uma cordilheira, com cumes cheios de neve, e já conseguia ver algumas árvores e um rio cortando as montanhas ao meio. E era tudo tão iluminado pela lua que eu podia ver as corujas, lá embaixo sorrindo para mim. E voava como nunca havia voado antes!


Um dia eu acordei.

6 comentários:

Unknown disse...

Os diminutivos são intencionais? Parace uma viagem lisérgica... rssrs... gostei do conto.

Abração

Zaíra disse...

Não faz isso com o menino Betinho! rsrsrs Raphael, a linguagem está ótima! Belo conto! Bjs

Anônimo disse...

Raphael, gostei muito da viagem.
Porém, "o chão se caindo" fez tudo cair por terra... (risos)

Repare isto, por favor. Depois queria comentar com você e com Betinho, in off, algo que tenho como uma história para um livro. Vou escrever esse livro um dia, mas, com ajuda de vocês, isso pode, quem sabe, sair mais rápido da minha cabeça para o papel.

Abraço

CAM

Raphael Montechiari disse...

Betinho...são intencionais. Achou que está estranho? Parece mesmo uma viagem lisérgica. Uma suposição de como seria uma imagem lisérgica..rsrsr...por enquanto...srs

Zaira: Po, que bom que vc vem sempre aqui dar uma olhada...isso me incentiva a escrever..ainda mais que escrevo ha tão pouco tempo! Bjs

CAM: Ficou feio mesmo!!!rsrsrs...o chao se caindo é sobra de um monte de mudanças que eu vou fazendo até publicar...era: "o chão se descolou dos meus pés" e aí eu troquei mas nao apaguei o "se".
E vamos falar sobre a historia sim...po, vc podia tentar escrever uns contos pra botar aqui tb!!

Unknown disse...

Carlos, como disse Rafinha, participe do blog escrevendo contos. Você escreve bem pra caramba.
Se estiver a fim, fale e coloco você como colaborador do blog.

Abração

Zaíra disse...

Raphinha, como disse Betinho (rsrs) também observei o deslize que o Carlos mencionou, mas não falei nada porque não o conheço. Não queria ser a crítica chata! rsrs Leio sempre sim, adoro ler!! Bjs